Foi numa conversa por msn que começaram os sintomas. Combinamos algo para aquela noite e, no final do papo, recebi um “oik”. Obviamente aquilo era um erro de digitação, com um i intruso no meio. Achei graça e mandei um emoticon de um porquinho tocando maracas. Ela não recebeu nada bem aquilo. Mais do que isso, a brincadeira foi o estopim para um descarrego daqueles. De pequenas pilhérias em pequenas pilhérias de minha parte, encheu-se. E a explosão saiu em forma de verborragia estragada, embolorada, cansada. Reclamou dos meus excessos e insensibilidade e da minha falta de compaixão e tato.
Assustado, fugi do assunto e propus uma conversa a vivo. A resposta: “oik”. Longe de ser louco, fingi não ter visto o retorno do i intruso e fui ao restaurante onde se daria nosso encontro. Peguei um trânsito monstruoso e, pra desolar ainda mais a situação, cheguei atrasado. Antes mesmo de avisar ao garçom que vinha em minha direção que alguém me esperava, já a avistei, de costas, aparentemente comendo uma salada.
Mal me aproximava da mesa, já ouvia a barulheira que fazia ao se alimentar. Arfava e grunhia com as costas curvadas e a cara bem próxima ao prato. Conforme os talheres eram levados à boca, pedaços de comida ora caiam no seu colo, manchando a blusa de azeite, ora espirravam em suas bochechas e nariz. Fiquei em choque. Confesso que posso ter exagerado na quantidade de sarros tirados com as coisas dela durante todo esse tempo de relacionamento, mas jamais imaginei isso ser motivo para não me esperar para comer e, pior, devorar com tanta ansiedade e fúria aquelas folhas de alface, rúcula e agrião.
Sentei-me. Ela demorou a perceber minha presença. “Amor...”, lancei, baixinho. Como se tivessem apertado um pause na cena, ela travou. Cessaram-se os movimentos e os barulhos. Devagar, seus olhos subiram em minha direção. Em seguida, a cabeça e, finalmente, o tronco. “Olá”, disse ela, com um sorrisinho verde, “Estou com uma fome que você nem imagina”. “Imagino sim...”
O jantar não transcorreu bem. Não consegui puxar outros assuntos e muito menos degustar a refeição, pois fiquei um pouco constrangido e enojado com o jeito com que ela comia. Em muitos momentos, seu nariz chegava a esfregar no prato. Algo inexplicável e realmente preocupante acontecia. O corpo de minha amada começava a engruvinhar, pêlos nasciam em suas orelhas e, como comecei a prever e temer, seu nariz foi-se achatando e, em pouco tempo, já lembrava uma tomada.
Nem pensei na sobremesa. Paguei correndo a conta e puxei-a pelo braço. Notei que sua mão também definhava, denunciando uma unha marrom nascente. Desesperei-me. Só podia ser sonho, culpa do Kafka ou da Viagem de Chihiro. Nada! Era real! Corri para o carro, ela em meus braços, toda suja de molho de tomate, já me fitando com um olhar irracional, brilhante, perdido. No caminho para o pronto-socorro, exausto e desnorteado, com a visão completamente turva, estacionei na primeira vaga que vi e desmaiei.
Acordei com os primeiros raios da manhã entrando pelo vidro da frente do carro. Enquanto lutava para descolar a pálpebra, virei correndo para o banco ao lado e “oik!”, lá estava uma mini porca, dessa vez já completa, com rabo de parafuso e tudo, e com a cabecinha torta, a me olhar. Sei que suínos não riem, mas ela tinha um ar gracioso, debochado até. Se fosse gente, estaria gargalhando, tenho certeza. Aquela seria a vingança dela? Valia a pena passar a eternidade em forma de bebê leitoa só para que eu pagasse meus pecados infantis?
Com a cabeça latejando de dor, tentei abrir a porta e meus dedos não davam conta, batiam no abridor e, desengonçados e duros, eram repelidos. Mirei minha mão e ali estava uma pata cascuda, com unhas grossas e uma pelagem branca que subia desde o que costumava ser meu pulso até onde meus olhos podiam ver, cobrindo boa parte do banco do carro. Desesperado, berrei por socorro: “mééé!”