segunda-feira, 22 de junho de 2009

a cor da camiseta


Parado no sinal, fitava pelo retrovisor a fila que se formava no meu rastro. Todo mundo estacionado onde passei há pouco, de olho no onde estou agora e alucinado pelo onde nem se vê mais à frente. E eu vagando lá atrás. Até que aparece o garoto pedinte, que é um, mas podia ser outro, outra, outros, montes, e, no fundo, às nossas insufilmadas vistas, já são todos o mesmo menino. Mas esse... esse tinha algo suficientemente forte pra me despertar do tráfego: vestia uma camiseta amarela. Mas não qualquer camiseta amarela. Era a minha camiseta amarela, esquecida há tempos num banco de carona. Aquela mesma, objeto de discórdia e, por irônico que pareça, razão de uma violenta lavagem de roupa suja.

Tinha certeza que era a minha por conta de uma mancha lilás em formato de foice na gola. De dentro do carro podia sentir o cheiro do vinho tinto daquele dia de lambança, de onde saí com a roupa marcada para sempre, para nunca mais. Incorpóreo, entranhei-me como traça no tecido que cobria aquele moleque, e me pus a fazer uma minuciosa expedição por entre os fios de algodão, sais de sudorese, poeiras e restos anexos de memória, até que o farol abriu, o garoto desistiu de um mumificado eu e virou-se pra calçada, onde uma mulher velha e muito gorda estava sentada, com os peitos caídos sobre a barriga e os olhos tomados pela catarata. A cabeça dela pendia e oscilava, como se procurando algo que não fosse branco, e que não fosse preto, porque era meio assim que enxergava o mundo, mas algo que fosse amarelo. Parece que é a cor mais expansiva entre as matizes. Talvez por isso o seu último suspiro de vista não acinzentada buscasse o semáforo, fiel alarme para a hora em que o garoto – seu filho, neto? – deveria partir em busca dos presos de mais um sinal vermelho.

E na troca pra segunda marcha, o garoto já chegava junto à mulher, que logo dirigia o pescoço em sua direção, farejando o amarelo da minha camiseta. E só agora eu percebia que a camiseta nem era tão amarela assim. Era mostarda. Mostarda Dijon.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

chiclé de bola

você me disse mãos ao alto
na montanha russa
e eu rezando à Pacha Mama
de ti no paso, Mama
você me acalma
desencana, tá na boa, deixe que a vaca tussa
e eu de olhos fechados
no teu abraço, mina

e vem filosofar
que todo mundo é feito chiclete
que a gente estica, amarga e gruda
como chiclé
ah, é?
então me enrola, me embola, me cola
me endurece embaixo do teu assento

e assim, por um momento
você perde a pose
Chiclé de bola no teu peito!

você me disse vamosimbora
num foguete à Júpiter
e eu saquei sem gravidade
o grave em ti é não amar
você responde
corta essa, o amor ilude
e eu querendo ocê na cama
escuta esse som do Itamar

“Devagar com esse andor, Leonor...”

quarta-feira, 3 de junho de 2009

oik



Foi numa conversa por msn que começaram os sintomas. Combinamos algo para aquela noite e, no final do papo, recebi um “oik”. Obviamente aquilo era um erro de digitação, com um i intruso no meio. Achei graça e mandei um emoticon de um porquinho tocando maracas. Ela não recebeu nada bem aquilo. Mais do que isso, a brincadeira foi o estopim para um descarrego daqueles. De pequenas pilhérias em pequenas pilhérias de minha parte, encheu-se. E a explosão saiu em forma de verborragia estragada, embolorada, cansada. Reclamou dos meus excessos e insensibilidade e da minha falta de compaixão e tato.

Assustado, fugi do assunto e propus uma conversa a vivo. A resposta: “oik”. Longe de ser louco, fingi não ter visto o retorno do i intruso e fui ao restaurante onde se daria nosso encontro. Peguei um trânsito monstruoso e, pra desolar ainda mais a situação, cheguei atrasado. Antes mesmo de avisar ao garçom que vinha em minha direção que alguém me esperava, já a avistei, de costas, aparentemente comendo uma salada.

Mal me aproximava da mesa, já ouvia a barulheira que fazia ao se alimentar. Arfava e grunhia com as costas curvadas e a cara bem próxima ao prato. Conforme os talheres eram levados à boca, pedaços de comida ora caiam no seu colo, manchando a blusa de azeite, ora espirravam em suas bochechas e nariz. Fiquei em choque. Confesso que posso ter exagerado na quantidade de sarros tirados com as coisas dela durante todo esse tempo de relacionamento, mas jamais imaginei isso ser motivo para não me esperar para comer e, pior, devorar com tanta ansiedade e fúria aquelas folhas de alface, rúcula e agrião.

Sentei-me. Ela demorou a perceber minha presença. “Amor...”, lancei, baixinho. Como se tivessem apertado um pause na cena, ela travou. Cessaram-se os movimentos e os barulhos. Devagar, seus olhos subiram em minha direção. Em seguida, a cabeça e, finalmente, o tronco. “Olá”, disse ela, com um sorrisinho verde, “Estou com uma fome que você nem imagina”. “Imagino sim...”

O jantar não transcorreu bem. Não consegui puxar outros assuntos e muito menos degustar a refeição, pois fiquei um pouco constrangido e enojado com o jeito com que ela comia. Em muitos momentos, seu nariz chegava a esfregar no prato. Algo inexplicável e realmente preocupante acontecia. O corpo de minha amada começava a engruvinhar, pêlos nasciam em suas orelhas e, como comecei a prever e temer, seu nariz foi-se achatando e, em pouco tempo, já lembrava uma tomada.

Nem pensei na sobremesa. Paguei correndo a conta e puxei-a pelo braço. Notei que sua mão também definhava, denunciando uma unha marrom nascente. Desesperei-me. Só podia ser sonho, culpa do Kafka ou da Viagem de Chihiro. Nada! Era real! Corri para o carro, ela em meus braços, toda suja de molho de tomate, já me fitando com um olhar irracional, brilhante, perdido. No caminho para o pronto-socorro, exausto e desnorteado, com a visão completamente turva, estacionei na primeira vaga que vi e desmaiei.

Acordei com os primeiros raios da manhã entrando pelo vidro da frente do carro. Enquanto lutava para descolar a pálpebra, virei correndo para o banco ao lado e “oik!”, lá estava uma mini porca, dessa vez já completa, com rabo de parafuso e tudo, e com a cabecinha torta, a me olhar. Sei que suínos não riem, mas ela tinha um ar gracioso, debochado até. Se fosse gente, estaria gargalhando, tenho certeza. Aquela seria a vingança dela? Valia a pena passar a eternidade em forma de bebê leitoa só para que eu pagasse meus pecados infantis?

Com a cabeça latejando de dor, tentei abrir a porta e meus dedos não davam conta, batiam no abridor e, desengonçados e duros, eram repelidos. Mirei minha mão e ali estava uma pata cascuda, com unhas grossas e uma pelagem branca que subia desde o que costumava ser meu pulso até onde meus olhos podiam ver, cobrindo boa parte do banco do carro. Desesperado, berrei por socorro: “mééé!”

terça-feira, 2 de junho de 2009

bigsmall

O que se há de fazer
com esse limite próximo?
Conter ou explodir?
Se é que sabe, vai

Atrás do chip ideal
das novas tecnologias
Em busca de um detergente
atômico

Se o que nos resta é ser
tão microscópicos
e ter cálcio, ferro e tal
o que valerá mais?

Atrás do toque final
para arredondar a bola
Em busca do velho oriente
icônico