o herói se encontrou
com o marginal
no quintal
pra caçar concha
de caramujo
e entender que o dito cujo
da cartola, era o coelho
e o que ele via
era espelho
aventuras gastronômico-escrevinhativas de um glutão com pose de gourmet
Agora, para minha surpresa, como há muito não vivia, administro esse cabo de guerra entre o pijama e o celular, entre o filme na TV e o network, entre a formatação do ócio e a atualização do curriculum vitae. Ainda não voltei aos treinos de malabarismo com limões, nem arrisquei negociação com um dos homens placa do centrão. Tampouco me entreguei à vida mística ou iniciei a decapitação dos gastos, o que implicaria abdicar, ainda que momentaneamente, do rodízio de comida japonesa, da cerveja colorado, do futeba semanal (se eu já tivesse começado), do quatropaum, do pedal de efeito novo, enfim, de tudo o que é supérfluo. Supérfluo pra quem, cara pálida?
Na verdade, continuo me ajustando à mudança de fuso horário, aclimatando o estômago e a sola do pé, espiando na maciota, fazendo coro com o dom anastácio III, flanando ao léu e papeando com os dispostos. Modulando uma de leve, como diria meu avô quando do beberico de um aperitivo. E, nesse contexto, tem hora que parece que o segundo está de onda e o minuto de marola. E isso só pode ser um sinal. Sinal de que preciso mesmo é vestir a sunga e o pé de pato e dar um tchibum no atual instante.
Eu não me equilibrava bem deitado naquele platô flutuante, ainda mais com as pernas penduradas pra fora. Cada vez que o vento batia, embora refrescante, tanto pelo sol de fim de tarde no rosto, quanto pelo silêncio insistente, eu quase caía de volta a Terra. Sempre quase. Mas nada que impedisse o sono, o soninho que me embrulhava. Logo eu já roncava alto e viajava para a padaria da avenida ceci, para a escadaria do metrô conceição, para o quintal da vó leninha em são joão, para a comportada matinê do sírio, para o pé de amora do sítio que virou canil. Até que o frio na barriga de mais uma turbulência interrompesse outra vez o cheiro de pão de queijo recém-saído do forno, a doce dor do joelho em carne viva, o chiado musical do radinho de pilha com capa de couro, o sabor das primeiras bitocas e cangotes, o branco dos dentes dos coroas ao me ver lambuzado da cabeça aos pés... .
E assim via. E assim petiscava. E era bom.
quero fazer arte com pêlo no sagu
sangrar o hall da fama em homenagem aos urubus
quero cuspir sorvete na brasa
abrir a porta do esgoto pra dentro das casas
quero nadar em nádegas macias
bater a testa dos outros na louça da pia
quero o dejeto do desejo nas calçadas
curtir crianças sem par, sem pais, sem paz, sem nada
quero todas as drogas em drágeas
colecionar armas, almas, amas e rédeas - huahua! (risada maligna)
quero provocar
os bem nascidos
os bem crescidos
os bem morridos
quero urgir, rosnar, babar
beirar suicídio
pra ser
querido
Há que se estar disponível e tudo tende a ser mais fácil com uma amada ao lado, pela predisposição poética. Serenidade é altamente recomendável também. Mas não em demasia, porque senão o sono vence. E isso me faz lembrar de outra exigência para o momento que precede a entrega do tíquete na catraca: café. E atenção: atenção! Concentre-se o suficiente para não perder o fio, mas não notar certas arritmias. Preenchidos os requisitos e determinado a enfrentar a urbanidade como uma chamada de sessão da tarde – “um misto de ação, aventura e comédia, cheia de surpresas mil” –, você já pode partir para as produções provindas da pátria-mãe da nouvelle vague.
Há Tanto Tempo Que Te Amo e Horas de Verão foram as duas pedidas, uma em cada dia. Ótimas histórias, diga-se de passagem, sendo a primeira mais misteriosa, delicada e bem contada cinematograficamente que a segunda. Pelo menos foi o que pensei enquanto ainda arrumava o cabelo amassado pela poltrona. Mas lá se vão alguns dias e sou obrigado a assumir que o Horas de Verão mexeu além do penteado e veio perturbando meus pobres miolos castigados.
Em poucas palavras, o filme se desenvolve em torno de uma divisão de herança entre três irmãos, cuja mãe morre deixando uma casa repleta de obras de arte. Não há grandes brigas, trapaças, chantagens, melodramas, nada disso. Nesse caso, ainda bem. E nem são as resoluções ora frias demais, ora um tanto reticentes dos personagens que mais intrigam, mas essa enorme dificuldade de manutenção de relações familiares ativas, com as pessoas em sintonia, próximas. O curioso é que afetividade está presente, ainda que de forma intrínseca.
E as causas dessa diluição do sangue do nosso sangue já nem são os desgastes de relacionamento e as maledicências naturais entre parentes, mas pura e simplesmente o efeito colateral da vida e da morte no mundo de hoje, do modus operandi em pixels e não em grãos, do establishment em HD, da crise do pós e da pré-crise e dá-lhe coisa e coisa e tal, porque nome quase velho é o que não falta. A questão é que saí de lá pensando que preciso visitar minhas avós, dar um beijo na mãe, um salve pra tia convalescente, um alô pros primos do interior, mas sabe como é, falta tempo... Ainda mais com tanto filme francês exigindo tudo isso da gente por aí.
Daqui da rua, antes mesmo de entrar no velório, já enxergo os dois nisseis. Estão tristonhos. Pudera, perder o irmão mais velho assim, jovem, de uma hora pra outra. Fazia pelo menos dez anos que não os via, desde o tempo em que jogávamos 'artilheiro' e fumávamos cigarros de camelô escondidos na viela. Já o falecido, nunca conheci, nem sabia de sua existência.
O fato é que estou diante dessa cena, sabe-se lá porque, e não vejo maneiras de fugir. Outros conhecidos já me viram e lá vou eu ao encontro dos enlutados. Ambos me cumprimentam com entusiasmo, apesar da dor que pesa em seus ombros e afunda seus olhos. Parecem um pouco alcoolizados. Antes que pudesse me dirigir ao caixão aberto, uma japonesa baixinha chega com uma bandeja, oferecendo uma caneca de chá e um copo quadrado de saquê. Aceito as duas coisas, por educação.
O chá está pelando, o que me faz atacar inicialmente o saquê. Geladíssimo, no ponto, e o cheiro denuncia: esse fermentado é dos bons, provavelmente importado, produzido pelas melhores castas especialistas da terra do sol nascente. Dois goles, o copo já está vazio e eu quase sorrio de alegria. Controlo-me pelo morto. Aliás, pelos vivos, donos do morto.
Enquanto assopro para esfriar o chá, me aproximo do defunto. Vejo primeiro as solas dos sapatos, flores, o volume de suas mãos sob um lenço com bordados orientais, flores, o paletó e a gravata, flores, e finalmente, o rosto. E ele é negro. Não bem “preto retinto”, “filho do medo da noite”, como diria Oswald de Andrade, mas negro daqueles que se convencionou chamar de pardo, mulato, cafuzo, essas coisas.
A surpresa provoca um movimento involuntário da minha mão e o chá quente escorre entre meus dedos. Mantenho a compostura e miro de rabo de olho os presentes no velório. De negro ali, ou quase lá, só a jovem faxineira ansiosa, mais preocupada com os sms que recebe no celular cor-de-rosa do que com a limpeza da sala. Os outros, todos nisseis, sanseis e que tais.
A massa japonesa presente não liga paras as minhas interrogações e segue com os bochichos comedidos típicos. E eu ali, sacando atentamente a face moribunda, que para minha estupefação, do nada, move as pálpebras – sim, ele se mexe! – e, com ar sério, fixa os olhos
“Mais!”, ele grita, antes de também tomar para si minha caneca de chá, virar o líquido férvido nos lábios e, em repulsa, cuspir tudo na minha cara. “Eu quero do outro, porra!”, e sai correndo para a rua. E todos, entorpecidos como pombas gordas, partem para a porta, de onde é possível ver o ressuscitado entrar no boteco da esquina, apoiar um dos cotovelos na fórmica, ordenar algo ao atendente e engolir, de bate e pronto, três doses de cachaça.
Alguns japinhas correm desesperados em sua direção, uns rindo, outros chorando, e eu desisto da saga para ir ao banheiro lavar o rosto. Abro a porta e ali está um dos irmãos do "morto" atracado com a faxineira. Ambos com as calças arriadas, sentados no vaso sanitário, ofegantes, ela sobre ele, ele de olhos fechados, extasiado, jorrando com uma garrafa aquele saquê divino no vão entre seus membros. Ela me vê, mas não interrompe a dança de acasalamento. Num relance, sinto que toda a insanidade faz sentido. Mas logo percebo que não. Óbvio que não. Ao fechar a porta, a última coisa que vislumbro é o celular cor-de-rosa apoiado sobre a saboneteira da pia, dormindo, sem tremeliques.
Canja de galinha era o que comiam quando Faustina puxou a mão da moça sentada à frente e, com uma faca de serra, começou a cortar seu dedo indicador, fazendo-o parecer uma ponta de croissant. Não saía sangue nem nada. De vermelho, só o esmalte da unha. Talvez por isso a vítima do ataque não tenha dado muita bola. Aliás, enquanto o dedo dela se separava do corpo, manteve uma animada conversa com a pessoa ao lado, entre fartas colheradas de sopa, levadas à boca com a outra mão.
Impassível, Faustina mergulhou aquele membro semi-contraído em seu caldo fumegante e, antes de saborear a iguaria que se despelava, salpicou queijo ralado e pimenta-do-reino. Lambeu os beiços, feliz com o novo ingrediente. A refeição seguia e, aos poucos, iam-se os dedos da moça. Uma a uma, as unhas eram deixadas no prato raso onde se apoiava a cumbuca da canja, como se fossem caroços de azeitona ou cascas de pistache. E Faustina entristecia-se de tanta satisfação, especialmente depois de roer os ossos do dedão carnudo.
Até que a decepada, após raspar com a colher o fundo do prato vazio, percebeu que não conseguia pegar e segurar o guardanapo com a mão "livre", pois sobrava-lhe somente o mindinho.
– Ei, você cortou vários!
– Foi mal, tava sem comer desde a hora em que acordei.
– Entendo.
– É sempre assim... Quando fico sem me alimentar por muito tempo, começo a passar mal, porque cai minha pressão. Aí quando vejo comida, devoro tudo em grande quantidade e muito depressa. Depois acabo passando mal de novo, por causa da digestão.
– Então devia ter pegado leve.
– É... Eu sei.
– Mas e agora, meus dedos... Será que crescem de novo?
Nessa hora, o até então calado acompanhante de Faustina, um senhor de longas barbas, respeitável barriga e musculosos dedos, se sentiu obrigado a intervir: