segunda-feira, 13 de julho de 2009

kabudachi


Daqui da rua, antes mesmo de entrar no velório, já enxergo os dois nisseis. Estão tristonhos. Pudera, perder o irmão mais velho assim, jovem, de uma hora pra outra. Fazia pelo menos dez anos que não os via, desde o tempo em que jogávamos 'artilheiro' e fumávamos cigarros de camelô escondidos na viela. Já o falecido, nunca conheci, nem sabia de sua existência.

O fato é que estou diante dessa cena, sabe-se lá porque, e não vejo maneiras de fugir. Outros conhecidos já me viram e lá vou eu ao encontro dos enlutados. Ambos me cumprimentam com entusiasmo, apesar da dor que pesa em seus ombros e afunda seus olhos. Parecem um pouco alcoolizados. Antes que pudesse me dirigir ao caixão aberto, uma japonesa baixinha chega com uma bandeja, oferecendo uma caneca de chá e um copo quadrado de saquê. Aceito as duas coisas, por educação.

O chá está pelando, o que me faz atacar inicialmente o saquê. Geladíssimo, no ponto, e o cheiro denuncia: esse fermentado é dos bons, provavelmente importado, produzido pelas melhores castas especialistas da terra do sol nascente. Dois goles, o copo já está vazio e eu quase sorrio de alegria. Controlo-me pelo morto. Aliás, pelos vivos, donos do morto.

Enquanto assopro para esfriar o chá, me aproximo do defunto. Vejo primeiro as solas dos sapatos, flores, o volume de suas mãos sob um lenço com bordados orientais, flores, o paletó e a gravata, flores, e finalmente, o rosto. E ele é negro. Não bem “preto retinto”, “filho do medo da noite”, como diria Oswald de Andrade, mas negro daqueles que se convencionou chamar de pardo, mulato, cafuzo, essas coisas.

A surpresa provoca um movimento involuntário da minha mão e o chá quente escorre entre meus dedos. Mantenho a compostura e miro de rabo de olho os presentes no velório. De negro ali, ou quase lá, só a jovem faxineira ansiosa, mais preocupada com os sms que recebe no celular cor-de-rosa do que com a limpeza da sala. Os outros, todos nisseis, sanseis e que tais.

A massa japonesa presente não liga paras as minhas interrogações e segue com os bochichos comedidos típicos. E eu ali, sacando atentamente a face moribunda, que para minha estupefação, do nada, move as pálpebras – sim, ele se mexe! – e, com ar sério, fixa os olhos em mim. Meio trêmulo e com os músculos rígidos pelo susto, dou um passo para trás e o falecido – falecido? – pula do caixão, catapultando flores para todos os lados. Nem tenho tempo de verificar a reação das pessoas ao redor e o cara já está em pé na minha frente, com os olhos arregalados. Rapidamente ele arranca o copo vazio de saquê da minha mão e, segurando-o no alto, espera que uma última gota da bebida deixada por mim caia em sua boca.

“Mais!”, ele grita, antes de também tomar para si minha caneca de chá, virar o líquido férvido nos lábios e, em repulsa, cuspir tudo na minha cara. “Eu quero do outro, porra!”, e sai correndo para a rua. E todos, entorpecidos como pombas gordas, partem para a porta, de onde é possível ver o ressuscitado entrar no boteco da esquina, apoiar um dos cotovelos na fórmica, ordenar algo ao atendente e engolir, de bate e pronto, três doses de cachaça.

Alguns japinhas correm desesperados em sua direção, uns rindo, outros chorando, e eu desisto da saga para ir ao banheiro lavar o rosto. Abro a porta e ali está um dos irmãos do "morto" atracado com a faxineira. Ambos com as calças arriadas, sentados no vaso sanitário, ofegantes, ela sobre ele, ele de olhos fechados, extasiado, jorrando com uma garrafa aquele saquê divino no vão entre seus membros. Ela me vê, mas não interrompe a dança de acasalamento. Num relance, sinto que toda a insanidade faz sentido. Mas logo percebo que não. Óbvio que não. Ao fechar a porta, a última coisa que vislumbro é o celular cor-de-rosa apoiado sobre a saboneteira da pia, dormindo, sem tremeliques.


3 comentários:

  1. e naquele dia lavavam-se alfaces na lavanderia, enquanto fronhas se agitavam como manjericões frescos na quitanda...

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  2. ô, seladim, num é que cê tava lá e eu nem te vi!

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mandaí!